Provocações por Jandir Jr. e Beatriz Pimenta Velloso

Usualmente associamos a palavra provocação à afronta e à ofensa. Contudo também é costumeiro associá-la à ação que tem por objetivo desarranjar as certezas solidificadas de certo indivíduo ou corpo social e, ainda, à simples acepção do causar, provocar algo, ainda que algo de contorno difuso, provocando consequências inesperadas.

O Grupo de Pesquisa A arte, a história e o museu em processo, em sua primeira ação pública, abre espaço para sete artistas desta Escola de Belas Artes intervirem e ocuparem o Museu D. João VI durante o período do seu VI Seminário. Através do deslocamento de obras e mobiliários do museu, exposição de arquivos, inserção de trabalhos no museu e realização de ações, que partem dele para outros espaços dentro e fora da Escola de Belas Artes, tem-se a conformação de encontros, hipotéticos ou não, entre o Museu D. João VI e outros circuitos e estratos sociais, como o da arte contemporânea que é o campo de atuação destes artistas.

Diferente da arte moderna, sem pretensões ao universal, sem hierarquias e parâmetros pré-estabelecidos, atualmente a arte contemporânea se dispõe a dialogar sobre qualquer tema, abordando de forma crítica o momento que atravessamos. Em sintonia com artistas internacionais que transitam por um mundo multicultural e de economia globalizada, os artistas dessa exposição revisam – e provocam, ao se inserir em um museu ligado à primeira instituição de ensino de arte no país – a história do Brasil, que durante muitos anos foi ensinada nas escolas: o longo período de escravidão, a ideia de sincretismo religioso, os parâmetros culturais estabelecidos e as obras desenvolvidas e estratificadas durante a ditadura militar.

Ao procurar dialogar com instâncias diversas, essa exposição se faz “caminhando no incerto, idolatrando a dúvida”, como costumava dizer Antônio Abujamra, na abertura de seu programa Provocações, veiculado na TV Cultura: “Um programa chamado Provocações numa televisão Cultura, deveria ser uma coisa maravilhosa, como se fossem os gregos, os gregos falando coisas lindas? Não. Nós falamos sobre provocações!”

Jandir Jr. e Beatriz Pimenta Velloso

Mônica Coster Implante Grego Fôrma de capitel jônico, em fibra de vidro e dois capitéis instalados nos pilotis do prédio da Reitoria. 2015

Mônica Coster
Implante Grego
Fôrma de capitel jônico, em fibra de vidro e dois capitéis instalados nos pilotis do prédio da Reitoria.
2015

PROVOCAÇÕES
Intervenções no Museu D. João VI

Ana Miramar (Ana Luiza da Cunha Oliveira)
Como ser Civilizado
Vídeo performance exposta em televisão
Gesso e grampos de cabelo
Duração: 2:56
2013

Beatriz Martins
Duo#3
Deslocamento de bustos brancos e pretos no acervo do Museu.
2015

Beatriz Pimenta Velloso
Como fazer cabeças
Vídeo feito a partir de foto de autoria anônima da degola do cangaceiro Lampião e seu grupo.
2015

Brenno de Castro
História quente 1
Projeção de vídeo mapping sobre molduras vazias. Trabalho exposto apenas na semana do VI Seminário D. João VI.
2015

Jandir Jr.
Documentação do acesso e das divulgações de agendamento de visitas ao Museu D. João VI
Panfletos em vitrine do museu
2015

Karina Wolff
Presença
Manequim, cavalete, papel e caixas de som
178 X 200 cm
2015

Mônica Coster
Implante Grego
Fôrma de capitel jônico, em fibra de vidro e dois capitéis instalados nos pilotis do prédio da Reitoria.
2015

Olivio Neto
Vênus, Nossa Senhora e Iemanjá
Impressão sobre laminas de tecido de voal, sobrepostas às imagens da Vênus de Milo e da Nossa Senhora.
2014

Exposição: de 19 de maio a 19 de junho de 2015
Av. Pedro Calmon, 550 – 7º andar
Prédio da Reitoria da UFRJ – Cidade Universitária, Ilha do Fundão
Rio de Janeiro – RJ

Conversa com Nelson Felix por Lucas Costa

Lucas Costa é artista e mestre em “Processos e Procedimentos Artísticos” no PPG em Artes do IA/UNESP, com bolsa CAPES-DS, sob orientação do Prof. Dr. Agnus Valente. Participa do Grupo de Pesquisa Poéticas Hibridas, coordenado pelos Prof. Dr. Wagner Cintra e Prof. Dr. Agnus Valente – IA/UNESP.

Esta entrevista foi realizada em 2014 como parte da pesquisa e dissertação de mestrado que teve sua defesa em maio de 2015.

O texto também pode ser lido em PDF, clicando aqui.

Nesta conversa, o artista aprofunda questões relativas ao seu processo criativo e a necessidade em concretizar trabalhos através de procedimentos que amalgama sua produção, para desse modo, instaurar uma espécie de pensamento maior. Ao passo que Nelson Félix discute e, aproxima-se de uma tradição artística, ele o faz justamente para refletir sobre a produção contemporânea e sua própria atuação no circuito. No sentido mais amplo, a conversa gira em torno da atividade artística, sobre a potência de um pensamento cultural.

Lucas Costa – Nas descrições dos projetos e na sua fala, percebo que é muito importante o peso na ideia do trabalho. Esse peso inserido quase sempre de forma instável, nos leva para o campo do sublime, pois o trabalho, assim como o conceito, é do campo ideal. Existe uma força bruta que não se demonstra por inteiro, como por exemplo, Lajes e Pilar que você fez no projeto Arte/Cidade.

Nelson Felix – Para mim, esse assunto não tem definição. 90% do meu trabalho, é verdade, gira em torno do sublime, mas esta palavra se basta, não importa defini–lá; ela é tão precisa e tão aberta que, trazer a definição do sublime para o trabalho, de certo modo, trava o processo.
Esta palavra vem acoplada a uma série de coisas e, caso houver definição, também haverá o afunilamento. É um conceito muito claro, mas te escapa no momento de uma sistematização. Quando você fala norte, existem milhões de norte, então é mais coerente você falar apenas norte.
Existem várias camadas de pensamento inseridas naqueles trabalhos, inclusive de cunho espiritual por exemplo. Mas assim como o sublime, sei que está presente e, no entanto, não tento racionalizá-lo.

L – De alguma forma, o peso direciona para uma instabilidade latente e assim temos algumas sensações.

Figura 1 Lajes, 1996-7. Arte/Cidade III, Moinho da Luz, SP. Nelson Felix

Figura 1 Lajes, 1996-7. Arte/Cidade III, Moinho da Luz, SP. Nelson Felix

N – Esses trabalhos (Lajes, Pilar) fazem parte de um mesmo pensamento. Apesar de eu realizar cortes nessas estruturas e comungar com Matta-Clark, reconhecendo em meu trabalho até certo elogio a esse artista, não é o corte que interessa nessa situação. De acordo com seus nomes, uma laje ou um pilar são elementos estruturais clássicos da arquitetura ou engenharia; o problema incidiu nisso. Assim, a intervenção nos elementos estruturais de um prédio, faz o trabalho ser toda essa edificação.

Quando eu desloco as lajes, por exemplo, o peso também é deslocado na estrutura do prédio, então acabo me relacionando com toda essa estrutura; áreas que não vemos foram também afetadas. Não há um buraco no prédio, e sim uma interferência na estrutura que ocupamos, a conversa é com toda a edificação.
O Pilar ainda é mais conciso, não tem aquela coisa espetacular de Lages com seus pedaços planando no ar. No Pilar, eu faço uma interferência mínima com um perfil de aço, porém isso é feito no nervo do prédio, ou seja, no pilar.
Se nos aprofundarmos, percebemos que eu faço cortes em determinado sentido e desestruturo em sentido oposto. Na realidade, essas ações formam cruzes demarcando os espaços. O trabalho fala disso e para acontecer dessa forma, é fundamental o peso. Tudo que é estrutura é calculado com base no peso.

L– Você disse uma vez, que a “ideia é mais emocionante que o trabalho” . Você se interessa pela ideia gerada a partir de um trabalho e não na autonomia deste raciocínio, independentemente de sua concreção, como queriam os conceituais, não é?

N – Mais do que a ideia, acho que eu quero levar meu trabalho para o campo do pensamento. Considero relevante a quantidade de pensamento que inserimos no sistema das artes. Isso é o que vale.

Se você é um poeta, naturalmente irá utilizar palavras; mas quando o poema é “espremido”, o mais interessante é a quantidade de pensamento anexado ali; é isso que detona na cabeça. Nós, ao invés de colocarmos palavras, colocamos outros materiais. E como você disse, não é a ideia no sentido dos conceituais. A partir de uma situação criada, um pensamento dialoga com o anterior e, por sua vez, dialoga com o que você está produzindo e assim por diante. Na realidade, você está trabalhando em um único pensamento durante todo o seu processo criativo durante 20 ou 30 anos. É como se estivéssemos escrevendo uma coisa usando outras palavras; só assim é emocionante.
No meu trabalho, existem coisas que vou turvando os fins com inícios de outros trabalhos, não deixando que eles acabem em si mesmos.
Ao meio disso tudo, alguns objetos e esculturas são prazeres que nos damos, e que servem também para acariciar os olhos; não vejo nenhum erro nessa função da escultura.
Entretanto, estou convencido que o interessante é, de fato, o processo de pensamento que vai se desenvolvendo. Também é isso que me fascina em outros artistas.
Às vezes um trabalho pronto só é necessário pra que esse pensamento viva.
Ao comungar com o próprio trabalho e com os de outros artistas, conseguimos responder questões que foram criadas, do nosso modo e assim, acrescentando novas coisas no circuito. Honestamente, deve ser isso que faz toda essa situação andar para frente e tornar-se interessante.
Essas relações nunca acabam, mas as maneiras vão se modificando. No meu caso, isso fica muito claro quando utilizo coordenadas para decidir o local em que irei trabalhar. Na maioria das vezes, esta primeira coordenada é rebatida para a criação do próximo trabalho, que por sua vez, também será rebatido e, por aí vai.

É um sistema em que, frequentemente, não sei bem para onde vou trabalhar. Eu fiz esta exposição agora , mas na realidade eu estava há 10 anos sem expor em São Paulo devido esse sistema que eu fui desenvolvendo. A Cruz na América , por exemplo, são quatro trabalhos que me possibilitou vislumbrar outro projeto situado no ponto de encontro desses segmentos que formam a cruz, e que por acaso, é uma cidade da Bolívia chamada Camiri. Esse trabalho, que nasceu da Cruz na América, chamado Concerto para encanto e anel, também foi rebatido e nasceram outros.
Na realidade, tudo isso é um emaranhado do pensamento que entrou aqui, foi pra lá, subiu pra cá… Só assim eu consigo que as coisas fiquem, para mim, mais interessantes, porque é muito raso fazer uma escultura pela escultura, pois estamos em 2014 e já trabalhamos muito com isso. Entendo que existem outras questões e respostas com interligações e tramas que podem ser operadas.
Você pode até ver Lajes e achar interessante, ou compreender o Pilar isoladamente; mas não há dúvida de maior riqueza se entender o Pilar e as Lajes, como parte de um único pensamento. A partir disso, você compreende que a ligação de alguns trabalhos sugere uma cruz, e que essa cruz risca a América e, quando encadeamos esses pensamentos, os trabalhos deixam sua escala física para adquirir uma configuração mental. Pensar no todo me emociona.

L – E é dessa forma que você se desvencilha do que os artistas da Land Art faziam; como é o caso de Robert Smithson, que tinha uma preocupação com o site. Ao passo que você lança uma coordenada, consequentemente você ignora uma determinada especificidade daquele lugar.

N – Sim, mas isso é uma conversa com grandes artistas; eu não conseguiria fazer isso se Smithson não tivesse falado que existe um negócio chamado site e, então, começo a pensar o que ocorreria se não existisse essa preocupação com o site, mas não raciocino dessa forma se realmente não houvesse esse site. É nesse sentido que vamos respondendo algumas questões já colocadas.
Mas como não vamos fazer site specific toda a vida, então eu penso na coordenada como meio. Assim ignoro a paisagem local desde o momento da criação; não penso exatamente no lugar, apesar de estar sabendo que estou realizando um trabalho externo. Dentro desse sistema insiro outras questões, do tempo, por exemplo, e assim por diante. É uma resposta.
É como ir a uma ópera e ver só o primeiro ato; de qualquer forma você terá boa música, bom canto etc. Mas se você resolver assistir toda a ópera, e compreender as particularidades, o contexto e as interligações de todos os atos, e relacioná-los, é muito mais emocionante.

L – É uma maneira de ultrapassar a narrativa e criar outras relações com aquilo que lhe é apresentado.

N – Sim, você só constrói esses diálogos se compreender tudo que foi feito antes de você. Discutir a própria linguagem é o interesse maior. Se determinada coisa é política, se é visual, se é forma; isso não tem a menor importância. O que realmente interessa é a discussão da linguagem.

L – Me parece que ao trabalhar com mármore de Carrara, você não se interessa muito pela qualidade ou aparência daquela matéria, e sim, o que esse mármore traz para o pensamento do trabalho, quais as questões que aquilo suscita na linguagem.

N – Na arte contemporânea aconteceram muitos questionamentos e é interessante quando a arte se funda nessas questões. Porém, quando tentamos dar uma resposta, o buraco é bem mais embaixo. No entanto, essa resposta não é definitiva, nem amarrada; é muito parecido com a forma do sublime: é melhor deixá-lo aberto, mas podemos propor algumas coisas.
Houve na arte, diversas tentativas de desconstruções, destruição mesmo. Isso foi totalmente necessário para descobrirmos que estávamos numa tábua rasa, mas essa tábua rasa já está aí há mais de 40 anos. Entendo que há uma necessidade de reconstrução, como já propuseram alguns modernos – Matisse é um caso de artista que estava o tempo todo propondo coisas na sua pintura. A arte contemporânea, em minha opinião, faz um movimento parecido e necessita de propostas.
Voltando ao mármore, a proposta é trazer esse material para o âmbito conceitual porque o mármore de Carrara me traz tudo isso, então eu o incorporo; não é porque é bonito ou feio, é porque existe uma tradição histórica inserida nele e dali eu inicio meu trabalho.
Atualmente, qualquer ação sua pode ser lida, nós conquistamos essa liberdade de incorporar qualquer coisa na arte, e por isso ela requer responsabilidades. Portanto, a simples escolha do material já é uma atitude artística e por isto requer um conceito acoplado a esta decisão.

Figura 2: Grande Budha, 1985-2000. Floresta amazônica 10º 07’ 49” S e 69º 11’ 11” W.  Nelson Felix

Figura 2: Grande Budha, 1985-2000. Floresta amazônica 10º 07’ 49” S e 69º 11’ 11” W.
Nelson Felix

L – Até que ponto as intenções e descrições de sua obra, que não estão claras no trabalho, auxiliam no entendimento desses? Ou melhor, até que ponto o trabalho permanece potente sem esses esclarecimentos?

N – Se você sabe, só cresce. São pensamentos que comungam. Se você não sabe, você vê o trabalho isoladamente e tudo está resolvido, igual ao caso de simplesmente olhar uma escultura.
O interessante na arte é o fato dela ganhar maior dimensão, na medida em que cresce também o entendimento sobre ela. E o mais emocionante é quando você conecta tudo, como se fosse uma só coisa.
O Grande Bhuda, por exemplo, não tem nada a ver com uma árvore específica. O que me interessava naquela situação toda era articular a floresta junto à escala temporal, ou seja, aliar o vegetal a ideia de tempo e turvar a escala, usando uma infinidade de elementos iguais.
Os antigos sabiam disso, pois em alguns povos tribais, quando nascia um bebê e ele morria, eles o enterravam numa árvore, e na medida em que esta árvore crescia, o tronco absorvia os ossos daquela criança. Existe aí uma relação de tempo que essa pessoa não teve; então eles criavam esse tempo através do elemento vegetal.
Em suma, eu estava interessado nessa questão temporal e nas relações com o espaço, que no caso do Grande Bhuda, é a floresta.
Assim, quando eu faço outro trabalho, lá do outro lado do país (Mesa) estou pensando nessas mesmas relações, mas em situações distintas (Grande Bhuda na floresta e Mesa no pampa). Logo depois, vou para o deserto fotografar com base nos meus batimentos cardíacos, e novamente mando outra coordenada e, de acordo com ela, “aparece” o litoral. Ali abandono uma esfera de mármore, que deve abrir pela expansão do volume da oxidação lenta do metal, inserido nela.
De algum modo, todas essas ações fazem parte de um único trabalho feito em quatro paisagens distintas, e devido a abstração desta escala gráfica, uma cruz, o torna mental. Eles se unem pela questão do tempo e pela forma de uma cruz. Ora tempos enormes, como o Grande Bhuda, que vai levar centenas de anos para absorver aquelas pontas metálicas; ora tempos mínimos, como no deserto em que a máquina fotográfica é acionada de acordo com a pulsação, cerca de um segundo.
Eu lido com a questão de tempo, apesar de lidar com as escalas. É uma maneira de utilizar a escala de uma forma diferente.
O Richard Serra, por exemplo, lidava com o problema de escala através da matéria; mas no meu caso, os problemas de escalas são extremamente mentais.
Entretanto, ao mesmo tempo em que eu lanço coordenadas e vou para esses lugares, também posso desenvolver meu trabalho no ateliê e ficar lixando pedra, que é uma atitude extremamente braçal. Por que não lixar pedra? Por que não tornar essa operação um dado conceitual? Por que não deixar viva a prática do ateliê em mim?
É desse modo que nasceu o Vazio sexo, dentro dessa gramática minimalista em que você não manufatura o seu trabalho. Tento inverter essa lógica com trabalho repetitivo, manual – todo dia fazia a mesma coisa. Durante meses realizei os mesmos atos; só mudava quando virava a face do cubo, depois tornava repetir. É minimalista neste sentido, pois é repetitivo, e este dado passa ser o conceito; o fazer se torna o conceito aqui.
Resumindo, você passa a compor num estado mental, não por mero formalismo.
Mas de qualquer forma, você não pode ser ingênuo em achar que tudo aquilo inserido no sistema vai ser lido; não há como entender toda a complexidade dessas situações. Então, eu reconheço que não sou do tipo de artista que “explode”, mas essa construção gradual de pensamentos é muito mais interessante para mim.

L – Essa coisa do fazer, em que você acentua no vazio sexo, também não está ligada a certa concentração através do longo tempo dispensado nesta atividade?

N – Sim, o que me interessa é o processo de concentração, que é muito parecido com a meditação. Aqui, o pensamento se dá na ação porque sua mente fica extremamente abstrata; o ato do fazer tem isso. Quando atingimos certo esvaziamento mental, alcançamos também uma concentração total.
Eu levei isso para outro nível em minha vida, quando decidi morar no meio do mato há mais de 30 anos atrás. Eu posso ficar sem falar uma palavra durante todo o dia, e por conta disso eu desenvolvo níveis de concentração.
Em minha opinião, essa solidão é extremamente importante para a concentração; aliás, eu acho que poucos artistas conseguiram algo importante sem trabalhar isolados- só me vem à cabeça Andy Warhol.

Figura 3: Mesa, 1997-1999. Pampa 29º 50’ 02” S e 57º 06’ 13” W. Nelson Felix

Figura 3: Mesa, 1997-1999. Pampa 29º 50’ 02” S e 57º 06’ 13” W. Nelson Felix

L – Michael Heizer disse:
Quero que meu trabalho complete seu período de vida durante a minha vida. Digamos que o trabalho dure 10 min. ou até seis meses, o que não é muito tempo na verdade, mesmo assim satisfaz a exigência básica do fato… Tudo é belo, mas nem tudo é arte.

Existe em seu trabalho uma forma de superar essa escala humana de tempo, de projetar esse tempo na cabeça?

N – O que Heizer talvez esquecesse nessa fala, é a intensidade da poesia. Vejo uma profunda intensidade, por exemplo, em fazer um trabalho e abandoná-lo para nunca mais vê-lo; ou ter um tempo de vida muito menor que o próprio projeto. A questão é a potência poética que o tempo pode lhe permitir. Saber que a tua existência é minguada pra ver o trabalho por completo já é muito poético.

L – A maioria dos seus trabalhos mantém um rigor formal, mas essas formas nunca são resolvidas buscando a estabilidade, pois sempre há algum elemento deslocado ou inserido no trabalho que desconstrói essa firmeza. Como funcionam essas opções?

N – Quando o trabalho está muito “perto” da forma, o pensar é diferente, é outro, ele não requer palavra, ele quer uma quantidade de sensações e geralmente essas sensações promovem algo instável no trabalho, mesmo quando não é evidente na própria forma.
Talvez essa tensão ocorra por causa de uma aparente agressividade. Outras vezes essa tensão se dá através da instabilidade nessas estruturas, ou no trato excessivo em lidar com o material deixando-o extremamente frágil. Todos esses elementos criam uma tensão visual que me interessa.
De certo modo, a nossa linguagem primeira é visual; depois agregamos uma série de outras coisas por outras questões. A tensão criada a partir disso é válida, mas nesse ponto, entramos num campo que não dá pra conversar como conversamos até agora. Essas coisas são definidas, como já disse, por sensações e não por palavras.
Tudo é possível de ser incorporado pelo trabalho. Depois limpamos, limpamos, até uma só ação, que traga uma potência, que concentre tudo, mas deixe latente esta possibilidade de amplidão. A mente é muito ampla, ela vai quebrando preconceitos que nós mesmos criamos com a linguagem, mas ao mesmo tempo ela vai ficando muito seca, ou seja, eu só me permito tornar evidente poucas ações.
Há um diálogo constante entre a construção do pensamento e a construção do objeto, criado através do material e da forma. Quando estamos no domínio da forma, esse desequilíbrio é muito importante para o trabalho e percebemos uma aparente violência, que surge através do olho e é sublimada (voltamos à primeira palavra dessa conversa). Quando você imagina pregos confrontando um cacto, por exemplo, há uma aparente violência, mas ela se transforma em poesia, pois tudo ocorre naquela tensão. Essa brutalidade de tentar agredir um cacto, que também tem espinhos, é sublimada.

Figura 3: Cacto vaso, 1990. Nelson Felix

Figura 3: Cacto vaso, 1990. Nelson Felix

L – Até que ponto, você que lida muito com a matéria, admite outros elementos que estão lá apenas para verificar a segurança ou estabilidade do trabalho? Em sua exposição na galeria Millan, você rebaixa o piso, perfura paredes, atravessa pavimentos e realiza outras operações para resolver melhor o trabalho e integrar essas atitudes ao pensamento. No entanto, você utiliza materiais meramente funcionais que parecem não fazer parte de sua poética, como é o caso da fita de silicone, utilizada ali para acomodar e proteger outros anéis de mármore dispostos no espaço. Como você lida com essas atitudes distintas?

N – Antigamente me incomodava. Nessa exposição, essas fitas são elementos zerados do meu olho. A minha preocupação ali, é que aquele anel de mármore ficasse daquele modo, e por isso foi necessário as fitas. Mas entendo que qualquer coisa pode ser incorporada na arte contemporânea, então aquele material pode ser lido também. Eu assumo esse risco.

L – Aquelas fitas simulam uma posição que o anel deveria estar por equilíbrio, simplesmente encostado nessa parede ou arrebentando-a, como sempre foi o seu pensamento até ali. Ficar daquele modo equilibrado é uma coisa; se apresentar daquela maneira com ajuda de fita é, em certo modo, uma simulação.

N – Tem uma coisa que acontece na minha cabeça, que eu vou levando a certo extremo, e quando ali chega, viro a página. Quando realizei, Encanto para concerto e anel, em que eu fiz o cilindro maior de mármore e viajei com ele durante duas mostras, tive diversas experiências. Quando eu o montei no Museu Vale, e depois resolvi fazer diversas ações pelo mundo, abandonando todo o resto das esculturas em diversos locais, decidi ali, que o único vestígio dessas ações estaria neste anel, posicionado em um espaço e em ângulo diferente – numa segunda exposição, nas Cavalariças do Parque Lage. Durante todo esse processo, ele sofreu milhões de desgastes e no último, nas Cavalariças, levei isso a certo limite, pois ficou sustentado a um metro do chão, por colunas de aço.
Agora imagine um anel de nove toneladas escorado por colunas de ferro; é um problema só.
A logística pra trazer um cubo de mais de 30 toneladas da Itália para cá, já é problemático. E após isso, esculpir essas quinas perfeitas no anel, é algo que acentua o nível de dificuldade. Depois desse ato nas Cavalariças, vendo essas quinas vivas explodindo com o roçar do ferro, já me bastou para todo esse pensamento fazer sentido, e apresentá-lo ao final como uma peça de escultura com todas as suas marcas.
Agora se eu quiser, depois dessas experiências, manter todos os mármores com quinas perfeitas, com a ajuda de fitas de silicone, não me incomoda mais. É como ir ao outro extremo, ou seja, fazer uma exposição que não vai ter marca nenhuma. Uma espécie de escultura que ficaria imaculada. Foi uma exposição onde o trabalho acontecia na Millan, para São Paulo. Aqui, fisicamente eu viajei; os anéis, não.
A proteção da quina pode ser lida, mas anteriormente isso já foi resolvido, não me importa mais e na minha cabeça é outra questão.
Ultimamente, nem coordenada eu sigo à risca. O trabalho Quatro cantos feito em Portugal, por exemplo, eu percorro os cantos do país pelas suas fronteiras, e não por medidas tão precisas, preferindo seguir uma convenção territorial.
Como artista, cheguei a um momento, em que rebato minha própria ideia, discuto meu próprio vocabulário.
Esse processo todo que você percebeu de proteção foi pensado, e essa liberdade foi construída. Seria mais fácil arrebentar a parede e encostar o anel lá, eu sempre fiz isso.
Num momento da carreira, você tem certa maturidade e só responde a você mesmo. Tudo que está ali é linguagem e fim de papo.
Eu acho bonito no final de uma situação, tudo aquilo virar uma escultura novamente. É uma atitude de rendição as artes plásticas, pois no final, assumimos que no fundo, tudo não passa de desenho, pintura ou escultura; isso ocorre desde que o homem meteu os pés nas cavernas. É bonito comungar com isso. Arte sempre é arte, vamos nascer e vamos morrer, não tem saída. Mas nesse entretempo, não existe nada de mais interessante do que tentar criar um pensamento cultural. O trabalho é parte da respiração.


NELSON FELIX (Rio de Janeiro, 1952)
Escultor, desenhista e professor. Iniciou seus estudos de pintura com Ivan Serpa, em 1971, e se formou em arquitetura, em 1977. Dedicou-se inicialmente ao desenho e, posteriormente, à escultura. Em 1989, recebeu bolsa do Ministério da Cultura da França, por exposição ocorrida na Galeria Charles Sablon, em Paris. Recebeu, em 1991, a bolsa Vitae de Artes Plásticas. A partir da década de 1990, realiza esculturas de mármore com base em órgãos ou aspectos do corpo humano. Em 1994, foi artista residente na Curtin University (Perth, Austrália) e no Karratha College (Karratha, Austrália). No mesmo período, idealizou as Mesas, esculturas em granito nas quais faz referências às interações entre a natureza e os objetos culturais. Ao retornar ao Brasil, realizou, em 1995, com Luiz Felipe Sá, o vídeo O Oco, sobre sua produção artística. Sua obra é analisada nas publicações Nelson Felix, com texto de Rodrigo Naves (Cosac & Naify, 1998); Nelson Felix, com textos de Glória Ferreira, Nelson Brissac e Sônia Salzstein (Casa da Palavra, 2001); Trilogias: Conversas entre Nelson Felix e Glória Ferreira (Pinakotheke, 2005); e Concerto para Encanto e Anel, com textos de Ronaldo Brito e Marisa Flórido Cesar (Editora Casa 11, 2011).


[1] Felix, Nelson. Trilogias de Nelson Felix / organização Glória Ferreira. Rio de Janeiro: Pinakotheke, 2005.

[2] Nelson Felix ocupou dois espaços para a exposição em São Paulo: Verso – Galeria Millan (06/11 – 21/12/2013) e Verso (meu ouro deixo aqui) – Instituto Tomie Othake (13/11/2013 – 09/02/2014).

[3] Cruz na América (1986 – 2003) é a demarcação imaginária criada no mapa a partir da criação de quatro trabalhos, em quatro paisagens distintas (floresta amazônica, pampa gaúcho, litoral cearense e o deserto do Atacama).

[4] Heizer, Michael.  Discussões com Heizer, Oppenheim, Smithson. in Escritos de artistas: anos 60/70/ seleção e comentários Glória Ferreira e Cecília Cotrim: [tradução de Pedro Süssekind… et al.] – 2.ed. – Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009.

Artigo > Interseções do corpo artista em fotografia pinhole – por Ana Hortides

                                                                                             Fotografia pinhole, 35mm, 2012
Ana Hortides é Artista visual, mestranda do Programa de Pós-Graduação em Estudos Contemporâneos das Artes na Universidade Federal Fluminense (UFF/RJ), estudante do curso de Artes na mesma instituição e na Escola de Artes Visuais do Parque Lage (EAV). O seu trabalho enquanto artista-pesquisadora investiga as relações entre corpo artista e imagem no campo das artes.
Resumo do trabalho:
A relação do corpo artista em fotografia pinhole é o objeto do estudo. Esse corpo se faz presente de forma física e mental nos processos artísticos elaborados e desenvolvidos pelos artistas Jochen Dietrich, Miroslav Tichý, Ana Hortides e Katie Cooke. Artistas que tomam para si a fotografia experimental por meio da ideia que se traduz em gesto propulsor para a realização de processos artísticos. A câmera como um organismo se torna parte do corpo artista sendo parte não dissociável da obra.
Link para leitura >> Interseções do corpo artista em fotografia pinhole – por Ana Hortides